Banco queria que eu roubasse

In: Correio da Manhã

2006-10-30 - 00:00:00
Actualidade 

Sandra Rodrigues dos santos

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O relato na primeira pessoa de quem teve créditos a mais

Antónia Guerra (nome fictício) tem 53 anos. Há quatro anos ficou desempregada. Semanas depois o marido encontrava-se na mesma situação. Sem indemnizações dos antigos patrões, só a mulher do casal tinha direito a subsídio de desemprego. Trezentos euros mensais que não chegavam para comer, educar o filho menor e pagar as contas. As dívidas começaram a acumular-se. Pouco compreensivos, os bancos ficaram perto de a mandar roubar para lhes pagar.

Corria o ano de 2002 quando o restaurante onde Antónia trabalhava fechou portas. O patrão foi à falência e os empregados – entre os quais o filho mais velho e a nora grávida à altura – não receberam qualquer indemnização. Valeu-lhe o subsídio de desemprego. Mas, já a adivinhar dificuldades para o futuro, dirigiu-se a um banco para pedir um empréstimo que a ajudasse a cobrir todas as outras dívidas então existentes.

Os três mil euros que pediu chegaram para pagar o que faltava do empréstimo do carro e cobrir alguns cartões de créditos. O que Antónia não sabia é que o marido, então com 51 anos, também ia perder o emprego, com a agravante de não ter direito a qualquer subsídio por não descontar para a Segurança Social.

Antónia recebia o subsídio de desemprego, mas os 300 euros não chegavam para sustentar a família e pagar as contas. Valeu-se da ajuda da cunhada que todas as semanas lhe dava comida. Mas as contas acumulavam-se e dos bancos começaram a telefonar-lhe.

“Eram ameaças horríveis, diziam-me coisas terríveis, quase sugeriam que fosse roubar para pagar as dívidas ou que fosse para a rua vender-me”, recorda Antónia, com as lágrimas a aflorarem-lhe os olhos.

“Passava dias inteiros a chorar, sem saber o que fazer”, lembra. É que nem Antónia nem o marido conseguiam arranjar trabalho e o subsídio de desemprego já tinha acabado. “Vou ao centro de emprego a entrevistas, mas assim que digo a idade que tenho dizem-me logo que é muito difícil”, adianta.

Como nunca foi pessoa de baixar os braços, Antónia lembrou-se, nem sabe como, de recorrer à Deco, podia ser que alguém a pudesse ajudar. “Foi o melhor que fiz, quando saí de lá parecia que me tinham tirado um peso de cima, continuava a ter dívidas, mas só a maneira como me receberam ajudou-me mais do que qualquer outra coisa na altura”, diz Antónia.

Com os conselhos da Deco em mente entrou em contacto com os credores, mas só uma grande superfície aceitou o seu pedido para pagar a dívida do cartão de crédito à medida que fosse tendo dinheiro. Os bancos recusaram-se a negociar. Antónia continua a lutar por pagar aquilo que ainda deve e que hoje já é bastante menos do que há quatro anos.

PORMENORES

CRÉDITO À HABITAÇÃO

Com mais dívidas do que aquelas que podia pagar, a família de Antónia Guerra valeu-se de não possuir um crédito à habitação, que é hoje em dia o maior encargo mensal dos portugueses. O senhorio mostrou-se compreensivo e sempre esperou sem pressões que os inquilinos pudessem pagar a renda.

DESEMPREGO

Antónia Guerra continua desempregada, por já ter mais de 50 anos. Vai amiúde ao centro de emprego ver o que aparece, mas até quando se inscreve em cursos de formação “preferem sempre chamar os mais novos”. Para ganhar uns trocos ajuda a vender peixe ao fim-de-semana. O marido conseguiu trabalho na construção, mas sempre para longe de casa, o que o obriga a passar semanas longe da família.

CONSELHOS

A quem se encontra em situação parecida àquela por que passou, Antónia recomenda que procurem ajuda e não se deixem arrastar pelo desespero. A todos os outros portugueses esta mulher tem um conselho para dar: “Só tenham créditos quando assim tiver mesmo de ser e muito cuidado com o cartão de crédito.”

NÚMEROS

405,6 mil é o número de desempregados em Portugal, de acordo com dados do INE.

21,3 mil portuguesas não têm trabalho, número superior ao dos homens desempregados.

12 mil indivíduos encontram-se em situação de desemprego de longa duração.

110 mil portugueses com mais de 45 anos encontram-se no desemprego.

166 mil mil é o número de desempregados no Norte do País.

NOTAS

GABINETE DE APOIO

O nível de endividamento levou o Governo a inaugurar um gabinete cujo objectivo é ajudar as pessoas a calcular quanto podem pagar.

AGRESSIVIDADE BANCÁRIA

A Polícia já recebe queixas de particulares contra bancos devido às técnicas utilizadas por estes para reaverem o dinheiro emprestado.

90 MIL MILHÕES NA HABITAÇÃO

O crédito à habitação totalizava, em Agosto, os 90,53 mil milhões de euros e correspondia a 79,7 por cento do total de empréstimos.

COMISSÃO EUROPEIA ALERTA

A Comissão Europeia considerou que Portugal faz parte de um grupo de seis países em que o endividamento pode ficar insustentável.

JUROS EM CRESCIMENTO

As taxas de juros estão a aumentar desde o passado mês de Dezembro, fixando-se actualmente nos 3,25 por cento.

ENDIVIDAMENTO ATINGE OS 120%

O governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, tem alertado por diversas vezes para o crescimento do endividamento das famílias, que se encontra no limiar dos 120% do rendimento disponível. Quer isto dizer que, em média, o salário anual, líquido de impostos e contribuições, é insuficiente para pagar a dívida contraída à Banca. Apesar deste peso no orçamento familiar, os portugueses continuaram a endividar-se.

Segundo Constâncio, isto é possível porque os bancos reduzem os ‘spreads’ e possibilitaram o “alargamento dos prazos de amortização dos empréstimos”, o que “contém o crescimento das prestações e sustenta a expansão do crédito aos particulares”.

POUPANÇA CRESCE MENOS QUE DÍVIDAS

Os portugueses estão a contrair mais dívidas e a poupar menos dinheiro. Esta é a conclusão a que se chega ao olhar para os dados do último Boletim Estatístico do Banco de Portugal.

Em Agosto passado o montante em dívida à Banca atingia os 113,5 mil milhões de euros, enquanto as poupanças eram de apenas 83,7 mil milhões de euros. Além de pouparem pouco, os portugueses também não estão a conseguir pagar as suas dívidas, o crédito malparado chega já aos 2,17 mil milhões de euros – um valor recorde a avaliar pelos dados da autoridade monetária nacional.

A consultora de crédito More Solutions considera que os portugueses gerem mal as suas dívidas e acompanham de forma deficiente a evolução dos produtos financeiros que subscrevem. A empresa adianta que os portugueses não têm capacidade negocial e lembra o facto de a Associação para a Defesa do Consumidor, Deco, ter recebido já dez mil pessoas a solicitar apoio no gabinete de acompanhamento de sobreendividados, uma boa parte dos quais com rendimentos superiores a cinco mil euros por mês.

Nos últimos anos, em Portugal, o crédito a particulares cresceu seis vezes, enquanto que o crédito a empresas subiu duas vezes e meia.

Sandra Rodrigues dos Santos

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publicado por AEDA às 11:28 link do post | favorito